quarta-feira, 22 de julho de 2009

Relendo histórias....

Por volta dos 9 ou 10 anos de idade era comum que eu acompanhasse minha avó durante o trabalho dela. Ela trabalhava como doméstica em algumas casas da vila de Trombetas. Pra chegar lá, íamos de canoa pois não morávamos na vila. Nossa casa ficava em outra vila, do outro lado do rio, chamada Beiradão. Os habitantes dessa vila onde morávamos eram, em sua grande maioria, negros (como eu).

A vida no Beiradão era mais complicada. Não tínhamos luz eletrética nem outras facilidades da vila. Mas podíamos estudar na escola da vila junto com os filhos dos funcionários. E para ir pra escola também íamos de canoa. Ou então, dependíamos de um transporte que a empresa da vila disponibilizava que funcionava uma três vezes por dia. Resumindo, éramos um grupo à parte da cidade, o povo do "Beiradão".

Dentre as casa que minha avó atendia, uma em especial me marcou. Não a casa em si, mas uma das crianças da casa. Era uma menina uns 02 ou 03 anos mais nova do que eu. Como eu, ela também estudava na escola, mas sempre nas turmas A. Enquanto minha avó trabalhava não me sobrava nada pra fazer a não ser me sentar em uma das cadeiras da sala e ficar lá, estática, vendo o tempo passar.

Normalmente, enquanto eu ficava no canto observando o movimento da casa, a menina ia para uma das janelas pentear os cabelos. Os cabelos dela eram lindos, volumosos, lisos. Ela penteava a perder as contas. E enquanto fazia isso nunca sequer me dirigiu o olhar. Eu era invisível no canto da sala. Vez por outra ela cansava e ia pro quarto brincar sozinha ou então saía para brincar com outros amigos da rua.

A mulecada daquela rua sabia se divertir. Brincavam muito; corriam, pulavam, se escondiam, gritavam, enquanto eu continuava na sala. Não me lembro de ser convidada para brincar com eles também. O convite tinha que partir deles. Só assim minha avó me permitiria sair. Eu ir lá fora e me apresentar pra brincar -sem ser convidada- seria impensável. Eu sabia o meu lugar.

Quantas vezes essas cenas se repetiram? Eu admirando a menina pentear os cabelos. Ela nunca me enxergando. Ela indo embora fazer outra coisas e eu no meu canto. Que pensamentos eu tinha? Basicamente revolta. Ela tinha uma casa bonita, cabelos bonitos (meu cabelo além de não ser liso se encaixava naquele tipo de cabelo seco, duro, ruim, sem forma), se divertia e nunca me olhava. Nem quando a mãe dela colocava o lanche da tarde pra mim e minha avó ela parecia querer sentar-se a mesa com a gente. Por que ela nunca me chamou pra brincar? Por que ela preferia ficar sozinha com seus brinquedos no quarto do que brincar de qualquer coisa comigo?

Com o tempo minha admiração pela cena se tornou raiva. Se eu pudesse queimava aqueles cabelos. Partia a cara dela e todos os seus brinquedos. Se eu pudesse nunca mais queria ver aquela menina na janela de novo, penteando aquele cabelo sem parar. Se achando linda, coitada...

Certo dia, enquanto voltava da escola com minha amigas, eu avistei a menina e as amigas dela do outro lado da rua indo pra escola também. Quando nossos caminhos se cruzaram, a raiva que eu sentia era tanta que tudo que conseguia fazer era gritar xingamentos pra ela. E a dissimulada, primeiro agiu como se não entendesse nada, depois começou a rir. Eu era bem maior do que ela. Podia quebrar aquela cara naquele momento. Só queria um pretexto. Gritei: "Lá vai aquela Lúcia*! Fica se penteando todo dia na janela se achando linda! Ah, tudo que eu quero é que ela diga que me acha feia pra eu atravessar essa rua e meter a mão na cara dela!" Pra meu espanto, ela riu e debochada falou "Mas tu é feia mesmo!". Ódio, ódio, ódio! Era tudo que eu queria. Quando me preparava pra atravessar a rua percebi o plano da covarde. Uma voz de adulto gritou pra mim "Ô menina, te manca! Olha o teu tamanho! Se tu encostar em um fio de cabelo da Lúcia tu vai ter que se ver comigo!"

A falsa tinha visto a vizinha dela vindo à distância e então, por isso, tomou coragem pra me dizer o que disse e correu em seguida pedindo socorro da adulta. Covarde! Tive que engolir em seco o abuso. A hora dela ia chegar...

Depois disso, a mãe dela contou tudo pra minha avó. E essa brigou comigo insistindo que a Lúcia era uma boa menina e que eu não podia prejudicar o trabalho dela por causa da minha inveja. Pra terminar, jogou um balde de água fria no meu plano de me vingar durante uma das visitas que eu faria à casa dela porque daquele dia em diante eu não ia mais poder acompanhar minha avó; pelo menos quando ela fosse naquela casa.

Desse dia em diante não me lembro de ter visto a menina de novo. Ou ela não me viu, como nunca tinha visto antes. A não ser naquela tarde em que eu quase me vinguei. Voltei a ser invisível pra ela, como sempre fui. Racismo era a palavra. A única explicação para ela nunca ter me chamado pra brincar.

Poderíamos ter sido amigas...

******************************
***********************************************************************************************

A Lúcia, na verdade era eu. Não quis me identificar antes porque queria saber como os leitores se sentiriam lendo a estória da menina que numa tarde qualquer de verão quase me arrebenta "a fuça"(com razão), pela visão dela. Na verdade eu tentei recriar a história pela ótica dela. A minha eu já sei. Estava na janela, penteando os cabelos.

Esses dias, não sei porquê, a história dessa menina me veio à cabeça. E eu não canso de me perguntar: por que eu nunca a chamei pra brincar?

Poderíamos ter sido amigas...

Pretendo fazer esse exercício mais vezes. Tentar me por no lugar daquelas pessoas que magoei (mesmo que involuntariamente). O ruim é que vocês já vão saber desde o início quem é a bruxa. :-)

Inté!

4 comentários:

Anônimo disse...

:-)

Minha ídola!!!

Luciano Freire disse...

Kraaaca, vc sabe mesmo contar uma boa historia... confesso que fiquei com vontade de dar uns tapas na Lucia !!!! Mas esse é um exerc´cio interessante q vc fez... jah o fiz várias vezes, pq tb magoei mta gente, com palavras, indiferença ou falta de atitude... bom... ao longo dos anos tenho tentando ser sempre alguém melhor p naum repetir esse erro...

valew marcy, veh se escreve logo par aum jornal, revista, algo assim!

Hugo disse...

Vai apanhar qdo chegar em casa!! :P

Beijos!

Bia disse...

Nossa Marcy!!
Bem, eu sem querer acabei lendo o final do post antes de ler o seu texto. Mas foi muito bem escrito mesmo!!

É um bom execicio mesmo, tentar se por no lugar dos outros. Eu acho que faço isso exageradamente!! As meninas até reclamavam.. hhahaha

beijoss
Bia Shibuya